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História Da Teologia Cristã de Roger Olson

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Academic year: 2021

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(1)

H I S T Ó RI A

DA T E O L O G I A

C R I S T Ã

(2)

História da teologia cristã

2 .0 0 0 anos de tradição e reformas

Tradução G o rd o n Chown 4 a impressão &

Vida

A C A O t M I C A

(3)

o 1999, de Roger E. Olson

Título original T h eStoryof Christian Theology Edição publicada por

In t e rVa r s i t y Pr e s s (Downers Grove, Illinois, EUA)

Todm os direitos em !íngua portuguesa reservados por Editora Vida

Pr o ib id aar e p r o d u z op o rq u a is q u e rm e io s, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTfc.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da

Nova Versão Internacional (NVI),

©2001, publicada por Editora Vida, salvo indicação em contrário.

Coordenação editorial: Fabiani Medeiros Edição: Denise Avalone

Revisão: Aldo Menezes

Revisão técnica: Davi Gomes e Rogério Portella Diagramação: Imprensa da Fé

Capa: Douglas !,ucas t e /

VMa

Ed it o r a Vid a Rua Júlio de Castilhos, 280 CEP 03059-000 São Paulo, SP Td.: 0 xx 11 6618 7000 Fax: 0 xx 11 6618 7050 www.editoravida.com.br www.vidaacademica. net

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C1P) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

OUon, Roger E.

HisttSria da teologia cristi: 2 000 anos de tradição c reformas / Roger E. O iso n t; t raduçâo Gordon Chown. — São Paulo: Editora Vida, 2001.

Título original: The S torj o f CJ>nstian Theviogjr Bibliografia

ISBN 85-7367-766-x

I . Teologia dogmática 2. Teologia dogmitica - História I. Tímio.

01*3740

índices para catálogo sistcmitico I. Teologia cristá : História 230.09

(4)

N iels C . N ielsen, meu D o k to r v a te r

(5)

Sumário

A breviaturas e info rm açõ es gerais ao leito r 9

Prefácio 11

In tro d u ção : A teologia cristã c o m o h istória 13

Pr im e ir a Pa r t e

P rim e iro ato: Visões cristãs conflitantes no século u 25

1. C rític o s e sectários pro v o cam co nfusão 27

2. O s pais apostólicos explicam o c a m in h o 39

3. O s apologistas d e fe n d e m a fé 53

4. Ire n e u desm ascara heresias 67

Se g u n d a Pa r t e

A tra m a se co m p lica : Tensões e transformações do século m 79

5. P ensadores n o rte-african o s exam inam a filosofia 85

6. O ríg e n e s de A lexandria deixa u m legado p e rtu rb a d o r 101

7. C ip ria n o de C artago p ro m o v e a u n id ad e 117

8. O cristian ism o se organiza 129

T ERCEiRA P a r t e

U m a g ra n d e crise ab ala a igreja: A controvérsia a respeito

da Trindade 141

9. O s alexandrinos d iscu tem a respeito d o F ilh o de D e u s 145

10. A igreja re sp o n d e n o C o n c ílio d e N icé ia 155

11. A tanásio su sten ta irre d u tiv e lm e n te a fé 165

12. O s pais capadócios resolvem a q uestão 177

Qu a r t a Pa r t e

O u tra crise ab ala a igreja: O conflito sobre a pessoa de Cristo 201

13. As escolas de A ntio q u ia e de A lexandria divergem so b re C risto 205

14. N e stó rio e C irilo levam a contro v érsia a u m a decisão 215

15. C alcedônia p ro teg e o m isté rio 227

16. C o n tin u a m os efeitos d o co n flito 241

Qu i n t a Pa r t e

A saga d e d uas igrejas: A Grande Tradição divide-se entre o

Oriente e o Ocidente 255

17. A gostinho confessa a glória de D e u s e a depravação h u m a n a 259

18. A igreja ocidental to rn a -se C atólica R o m an a 283

19. A igreja oriental to rn a-se O rto d o x a O rie n ta l 295

(6)

A saga d a ra in h a das ciências: O s escolásticos reavivam e entronizam a

teologia 317

21. A nselm o e A belardo especulam sobre os

ca m in h o s de D e u s 323

22. Tom ás de A q u in o re su m e a verdade cristã 339

23. O s nom inalistas, os re fo rm ad o res e os h u m an istas

desafiam a síntese escolástica 357

Sé t im a Pa r t e

U m a nova g u in a d a n a n a rra tiv a : A igreja ocidental é reformada e

dividida 379

24. L utero redescobre o evangelho e divide a igreja 385

25. Z u ín g lio e C alvino organizam o p e n sa m e n to

p ro testan te 407

26. O s anabatistas voltam às raízes d o cristian ism o 425

27. R om a e C an tu ária seguem ca m in h o s separados, mas

paralelos 441

Oitava Pa r t e

O c e n tro d o e n re d o se fra g m e n ta : Os protestantes seguem caminhos

diferentes 463

28. O s arm in ian o s ten tam refo rm ar a teologia refo rm ad a 465

29. O s pietistas p ro c u ram ren o v ar a teologia lu teran a 485

30. O s p u ritan o s e os m etodistas esforçam -se para reavivar

a teologia inglesa 505

31. O s deístas ten tam tran sfo rm ar a teologia p ro testan te 531

No n a Pa r t e

A tra m a g eral se divide: Os liberais e os conservadores respondem

positivamente à modernidade 547

32. A teologia liberal ajusta-se à c u ltu ra m o d e rn a 553

33. A teologia conservadora consolida as categorias

tradicionais 569

34. A n eo -o rto d o x ia tran scen d e a divisão 585

35. A teologia co n te m p o râ n e a e n fren ta a diversidade 607

C o n clu são : O fu tu ro de u m a história inacabada 629

N o ta s 633

(7)

Abreviaturas e informações gerais ao leitor

■LN os p rim eiro s capítulos deste livro são fre q ü e n te s as referências aos escritos dos p rim eiro s pais da igreja, c o n fo rm e co n tid o s nas seguintes coleções: The atite-Nicene

fathers: translations o f the writings o f the fathers down to A .D . 325, ed., A lexander R oberts

e Jam es D o n a ld so n , 10 vols., G ra n d R apids, E erd m an s, 1988; A select library o f the

Nicene and post-Nicene fathers o f the Christian Church, ed., P hilip Schaff, 14 vols.,

G ra n d R apids, E erd m an s, 1984; c A select librar)׳ o f Nicene and post-Nicenefathers o f the

Christian Church, seg u n d a série, ed., P hilip S ch aff e H e n ry Wace, 14 vols. G ra n d

R apids, E erd m a n s, 1984 (coletâneas idênticas ta m b é m são publicadas pela editora H e n d ric k so n , de Peabody, M assachussets.). Essas coleções estão g eralm en te à d is­ posição nas bibliotecas d e sem in ário s e universidades.

A d o cu m en ta ção nas notas n o fim d o v o lu m e fará referência a essas coletâneas

m ed ian te o em p re g o das iniciais e dos n ú m e ro s dos volu m es. a n i ; refere-se à série

de Ante-Nicenefathers, n p n í : refere-se à série Nicene and post-Nicenefathers ofthe Christian

Church e a segunda série d e Nicene and post-Nicene fathers o f the Christian Church será

designada p o r n c p f 2 . Essas abreviaturas serão seguidas pelo n ú m e ro do vo lu m e.

Todas as datas deste livro são d .C ., exceto q u a n d o especificadas pelo c o n trá ­ rio , a.C . N a m aio ria d os casos, os an o s d o n a sc im e n to e da m o rte de u m a pessoa são re g istrad o s u m a ú n ica vez e n tre p arên teses logo após a primeira menção d o seu n o m e. O s anos e n tre p arên teses após o n o m e de g o v e rn a n te s e papas re fe re m -se ao p e río d o de re in a d o e n ão ao te m p o d e vida. O s te rm o s técn ic o s teoló g ico s e filosóficos em geral são d e fin id o s q u a n d o aparecem pela p rim e ira vez. U s e o índice para localizar a p rim e ira aparição e d efin ição de q u a lq u e r te rm o q u e lhe pareça estra n h o .

(8)

J A s pessoas vivem das histórias q u e m o ld am suas identidades. A queles d e n tre nós

q u e se cham am de cristãos são m oldados pela história cristã. A h istória cristã, no en tan to , inclui m ais d o q u e apenas a narrativa bíblica. A narrativa e cada u m a de suas histórias, salm os, cartas e o u tras peças literárias q u e aju d am a co m u n icá-la tem certa prim azia para a m aioria dos cristãos. E nossa m etanarrativa, a história abrangente dos ca m in h o s de D eu s co m o seu povo na criação e redenção. C ristão é to d o aquele q u e se identifica com essa história e p ro c u ra viver seg u n d o a visão da realidade q u e ela expressa. In feliz m en te, m u ito s ignoram quase q u e to ta lm e n te a co n tin u ação da narrativa secundária da o bra d e D e u s com o seu povo — o co rp o de C risto — após o té rm in o da narrativa bíblica. Este livro é u m a tentativa de p re e n ­ c h e r a lacuna n o c o n h e c im e n to de m u ito s cristãos sobre essa história. A lacuna com eça com o fim d o N o v o T estam ento e a co nclusão da vida e m in istério dos apóstolos e vai até o cristian ism o co n te m p o râ n e o . O q u e D e u s fez d u ra n te dois m il anos para levar seu povo ao e n te n d im e n to da verdade? A teologia é exatam ente isso: a fé b u sca n d o o e n te n d im e n to da v erdade de D eus.

A fé b u scan d o o e n te n d im e n to : há dois m il anos os cristãos se esforçam nessa tarefa e p ro c u ram cu m p ri-la . A narrativa dessa busca da v erdade d e n tro da igreja é p raticam ente desco n h ecid a de m u ito s cristãos co n te m p o râ n e o s, ainda q u e sua h is­ tória pessoal de cren te em Jesu s C risto seja p ro fu n d a m e n te afetada p o r ela. E stam os na m esm a situação q u e a das pessoas q u e nada sabem sobre suas orig en s — de o n d e vieram e q u e m eram seus parentes. Só q u e o nosso caso é ainda m ais grave. E sem elh an te ao dos in d iv íd u o s q u e q u e re m ser b o n s cidadãos, m as p o u c o o u nada sabem sobre a história de sua nação, inclusive de seu d e sc o b rim e n to , guerras, h e­ róis, p rincípios e governantes.

Viver co m o seg u id o r p len o e o p eran te de Jesu s C risto é c o m o ser u m b o m cidadão de u m a nação. E preciso c o n h e c e r a h istória das pessoas q u e p ro c u rara m seguir a C risto e ser discípulos dele nas diversas cu ltu ra s e p erío d o s da história. Ao c o n tar aos leitores pelo m en o s u m a parte dessa histó ria — a h istória das crenças

(9)

H i s t ó r i a d a t e o l o g i a c r i s t ã 12

cristãs — espero estar c o n trib u in d o para seu d iscipulado cristão, bem c o m o para a co m p reen são de si m esm os. T am bém espero e o ro para q u e ela fortaleça a igreja universal d e Jesu s C risto , q u e precisa u rg e n te m e n te re c u p e ra r seu senso de p arti­ cipação na grande h istória da o bra de D e u s co m o seu povo no d e c o rre r de c e n te ­ nas de anos.

A idéia deste livro surgiu a p artir do cu rso Pais e reformadores da igreja: a história da

teologia cristã q u e a d m in istre i p o r q u in z e an o s na F acu ld ad e B eth el (St. Paul,

M in n eso ta). E n co n tre i livros excelentes a resp eito da h istória d o p e n sa m e n to cris­ tão, m as n e n h u m satisfez c o m p letam en te a m im o u a m eu s alunos. U sam o s os livros disponíveis, m as sem p re sen tim o s a necessidade de algum a coisa diferente. C o n v ersa n d o com am igos, colegas e com R o d n ey C lap p , e n tão re d ato r-c h efe da InterV arsity Press, a idéia geral e o esboço deste livro foi g an h a n d o form a e final­ m e n te d eu seu fruto.

O s capítulos baseiam -se nas aulas q u e m in istrei repetidas vezes, m as acrescen­ tei-lhes m uitas pesquisas antes e d u ra n te m in h a licença sabática n o o u to n o de 1997, concedida tão g en e ro sam en te pelos cu rad o re s da faculdade B ethel. G ostaria de agradecer a m eu am igo e c o -a u to r Stanley G. G re n z pelo seu en c o rajam e n to e orientação d u ra n te a concepção deste livro e o início d o trabalho. G ostaria tam b ém de expressar o grande apreço p o r m eu editor, R o d n ey C lap p , q u e m e d eu toda liberdade, além de seu apoio e conselhos. A A ssociação dos E x-A lunos da faculda­ de B ethel p ro v id en c io u u m a doação generosa para a co m p ra da coleção com pleta das escrituras dos pais da igreja, q u e foi de valor inestim ável para as pesquisas e o d esen v o lv im en to dos p rim eiro s capítulos deste livro. A gradeço à Associação pelo apoio. M in h a q u erid a esposa, Becky, e nossas filhas, A m anda e Sonja, o fereceram - m e seu a m o r e c o m p re e n sã o n os m eses q u e fiq u ei tra b a lh a n d o p ra tic a m e n te aco rren tad o à m esa do c o m p u ta d o r em m eu escritó rio dom éstico . Elas m e deram o espaço e o en c o rajam e n to de q u e precisava para c o n tin u a r sem p re e m frente.

Acima de tudo, gostaria de agradecer ao h o m em q u e m e o rien to u d u ra n te os anos de d o u to ra m e n to na U niversidade Rice, em Iio u s to n , Texas. M eu conselheiro e presidente do D e p artam en to de E studos Religiosos, o dr. N iels C . N ielsen . M esm o depois de eu estar form ado e ele, aposentado, não deixou de ser m entor, exem plo e am igo para m im . R espeito-o com o a u m pai. Ele é, sem dúvida algum a, o h o m em m ais q u erid o e im portante de m in h a vida e, em grande parte, o responsável p o r tu d o que ten h o realizado de bom e positivo co m o acadêm ico cristão.

(10)

A teologia cristã como história

X in q u a n to a h istória é considerada co m o ossos secos p o r m u ito s leitores m o d e r­ nos, u m a “p eq u e n a h istó ria” é sem p re acolhida co m â n im o e interesse. M as, afinal das contas, a história é feita de “peq u en as histó rias”. N esse sen tid o , história não significa ficção o u fábula, m as “narrativa”. C o n ta r a história é n arrar cro n o lo g ica­ m e n te as histórias, as narrativas q u e relatam (com tanta exatidão q u a n to possível, seg u n d o esperam os) os eventos, m o v im e n to s, idéias e vidas de pessoas q u e cria­ ram culturas, religiões e nações.

A h istória da teologia cristã pode, e deve, ser contada co m o se fosse u m a h istó ­ ria. Está repleta de tram as com plexas, fatos em o cio n an tes, pessoas in teressantes e idéias fascinantes. Este livro é fru to d o esforço de co n tar b em essa h istória e de tratar com im parcialidade cada u m a das suas tram as secundárias.

Existe u m d e n o m in a d o r c o m u m q u e p e rc o rre to d a a h istó ria da teolo g ia cristã e u n e as p e q u e n a s h istó ria s em u m a ú n ic a e g ra n d e n a rra tiv a d o d e s e n ­ v o lv im e n to d o p e n s a m e n to cristão . E o in te re sse q u e to d o s os te ó lo g o s c ristã o s (p ro fissio n a is e leigos) tê m pela salvação: o g esto re d e n to r de D e u s de p e rd o a r e tra n s fo rm a r os p ec ad o re s. S em d ú v id a , o u tra s p re o c u p a ç õ e s e n tra m em jo g o n o d e c u rs o da h istó ria , m as, a p a re n te m e n te , o in te re sse em c o m p re e n d e r e ex p licar a d e q u a d a m e n te a salvação su b jaz a q u a se to d o s os o u tro s . U m h is to ­ ria d o r c o n te m p o r â n e o da teo lo g ia a firm o u c o m razão q u e “g e ra lm e n te , o te ó ­ logo e n c o n tra n o s p ro b le m a s da s o te rio lo g ia [a d o u trin a da salvação] o alicerce so b re o q u al edifica to d as as su as o p in iõ e s d o u tr in á r ia s ”. 1 A h istó ria da teo lo g ia cristã, p o rta n to , é a h istó ria da reflex ão cristã s o b re a salvação. In e v ita v e lm e n ­ te, ta m b é m en v o lv e reflex ão s o b re a n a tu re z a d e D e u s e da rev elação q u e ele fez de si m e sm o , na pesso a de J e s u s C ris to , e s o b re m u ita s o u tra s cre n ç a s liga­ das à salvação. N a re alid ad e, p o ré m , tu d o se re su m e na salvação: o q u e é, c o m o ac o n te ce e q u ais os p apéis a se r d e s e m p e n h a d o s p o r D e u s e p e lo h o m e m para q u e ela se c o n c re tiz e .

(11)

H i s t ó r i a d a t e o l o g i a c r i s t ã 14

Essa p re o cu p aç ão c o m a salvação ficou ev id e n te p rin c ip a lm e n te nas etapas form ativas e reform ativas d o d esen v o lv im en to da d o u trin a cristã. O s grandes d e ­ bates sobre o q u e se deveria c rer em relação a D eus, Jesu s C risto , ao pecado e à graça q u e co n su m iam a atenção dos p rim eiro s pais da igreja, en tre aproxim ada­ m e n te 3(H) e 500, basicam ente visavam resguardar e p ro teg er o evangelho da salva­ ção. As divisões q u e o co rreram d e n tro da cristandade e na sua teologia d u ra n te o século xvi e q u e levaram às reform as p ro testan te c católica na E u ropa deveram -se, em grande parte, às diferen tes interpretações d o evangelho. Em o u tro s períodos, a questão da salvação, de tu d o o q u e está ligado a ela e de c o m o se deve guardá-la e protegê-la, ficou relegada ao seg u n d o plano, e n q u a n to os líderes e teólogos da igreja debatiam o u tras qu estõ es e se esforçavam para d esc o b rir as respostas de o u ­

tras perguntas. M esm o nessas ocasiões, 110 en ta n to , o eco da preocupação com a

salvação propaga-se através das reflexões e controvérsias teológicas. N ã o seria j u s ­ to im p o r u m tem a rígido de “preocupação com a salvação” para cada teólogo e p erío d o da história da teologia, de m o d o q u e, em certos m o m e n to s, esse tem a será o grande destaque desta narrativa e, em o u tro s, será praticam en te im perceptível.

M as e q u a n to à teologia? Assim com 110 caso da história, m u ito s leitores m o d e r­

nos estão convencidos de q u e ela é necessariam ente enfad o n h a, desinteressante, im praticável e ex tre m am en te distan te da vida cotidiana — e m esm o d o viver cris­ tão. S tanleyJ. G re n z e eu, em livro anterior, ten tam o s corrigir essa im pressão e rrô ­ nea. A teologia é inevitável na m edida em q u e o cristão (ou q u a lq u e r o u tra pessoa) p rocura p ensar de m o d o coeren te e inteligente a respeito de D eus. E não so m en te é inevitável e universal, c o m o tam b ém valiosa e necessária. S em a reflexão form al a respeito d o significado d o evangelho da salvação q u e é parte da teologia, ele se degeneraria rapid am en te para a condição d e m era religião folclórica e perderia toda a sua convicção da verdade e sua influência sobre a igreja e a sociedade. Aos leitores

q u e não acreditam na im portância e 110 valor da teologia, re c o m en d o m eu livro

an terio r Quem precisa de teologia? Um convite ao estudo acerca de Deus e de sua relação

com 0 ser humano (São Paulo: Vida, 2001).

1 lá m u ito s livros sobre a história d o p en sa m e n to e teologia cristãos escritos em

diversos níveis. H istórias d o cristianism o tam bém são n u m ero sas e facilm ente dis­ poníveis. O p resente v o lu m e não tem o p ro p ó sito d e su b stitu ir n e n h u m deles, m as antes fazer nova con trib u ição à coleção. Sem q u e re r a trib u ir a este livro a qu alid a­ de de exclusivo, diria q u e são poucos os livros sobre o assu n to q u e p o d em ser lidos p o r pessoas co m u n s — aquelas q u e têm p o u co 011 n e n h u m c o n h e c im e n to da his­ tória e d o desen v o lv im en to da teologia cristã. Este livro foi escrito para leigos e estu d an tes cristãos, sem q u a lq u e r noção teológica, e tam b ém para pastores cristãos interessados em u m a “recapitulação” da teologia histórica. N ã o tem a preten são de ser acadêm ico e de o ferecer visões inovadoras baseadas em pesquisa original o u de

(12)

apresentar novas p ropostas para o debate acadêm ico. É u m p an o ram a m o d esto dos p o n to s de especial interesse da teologia histórica cristã, para leitores q u e talvez não ten h am o m e n o r c o n h e c im e n to o u noção dessa h istória fascinante.

D e n tro das lim itações de u m livro q u e trata da teologia h istórica, p ro c u rei, p o r­ tanto, to rn a r este v o lu m e sim pático ao leitor. Ele é quase q u e to ta lm e n te d estitu íd o de jarg õ es técnicos de teologia e, nos po u co s casos em q u e não se pô d e evitar o uso, os term o s são d efin id o s co m clareza d e n tro do co n tex to e m q u e são usados. E m ­ bora consista basicam ente de idéias (crenças, d o u trin as, teorias), este livro p ro c u ra vinculá-las a even to s co n creto s e pessoas reais, e explicar d o m o d o m ais claro p os­ sível p o r q u e elas eram relevantes e c o m o surgiram . E m geral, nasciam de c o n tro ­ vérsias e conflito s a respeito das crenças e da espiritualidade cristãs. N ã o existe n e n h u m a d o u trin a d o cristian ism o q u e ten h a su rg id o do nada. C ada crença, q u e r considerada “o rto d o x a ” (teo lo g icam en te co rreta) o u “h e ré tic a ” (teologicam ente incorreta), nasceu de u m desafio. O desafio po d e te r sido u m a disto rção do evan­ gelho co m m ensagem p re te n sa m e n te cristã o u u m a crença p o p u la r o u prática es­ piritual considerada não-bíblica o u an titética à fé cristã autentica. Pode tam b ém ter sido um a filosofia o u crença cu ltu ral não-cristã q u e desafiava os p ensadores cris­ tãos a re sp o n d e r co m um a alternativa m e lh o r co m base em fo n tes cristãs.

D e q u a lq u e r form a, a história da teologia cristã não é u m a h istória de p en sa d o ­ res profissionais em to rre de m arfim in v en tan d o d o u trin as obscuras e especulativas a fim de c o n fu n d ir os fiéis cristãos sim ples. S em negar q u e algo assim possa ter acontecido d e tem p o s em tem p o s na h istória d o cristian ism o , q u e ro re fu tar essa im agem p o p u lar d e m o n stra n d o aqui q u e toda crença cristã relevante su rg iu p o r razões u rg en tes e práticas. M esm o u m a p erg u n ta ap a re n te m e n te estran h a, com o: “Q u a n to s anjos co n seg u em dan çar na cabeça de u m alfinete?”, não era debatida

pelos p ensadores cristãos 110 passado apenas para m atar o tem p o , n e m para d ar a

im pressão de serem eru d ito s. A q u estão era explorar a n atu re za de seres espirituais n ã o -h u m a n o s, co m o os anjos, e re fu tar a idéia d e q u e seriam seres m ateriais que o cupam espaços. Existe u m a lenda fam osa (ou infam e) da histó ria da teologia cris­ tã q u e conta q u e os bispos e teólogos da tradição o rto d o x a o rien tal estavam d eb a­

ten d o essa m esm a q uestão 11a grande catedral de C o n sta n tin o p la (B izâncio) e n ­

q u a n to os invasores sarracenos irro m p iam pelos p o rtõ es da cidade e d estru íam os ú ltim o s vestígios d o im p ério cristão antes tão poderoso. A veracidade o u não dessa lenda é irrelevante para o q u e te n c io n o provar, q u e é sim p le sm e n te q u e todas as q u estões debatidas, e todas as crenças q u e foram desenvolvidas, não aconteciam à toa, m as tin h a m sua razão de ser.

R eco n h ecid am en te, algum as razões para o debate e d ese n v o lv im en to teológi­ cos são m elh o re s d o q u e o utras, m as não im agine, p o r favor, q u e só p o rq u e um a idéia nessa h istória parece, de início, especulativa ou im praticável, te n h a surgido

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H i s t ó r i a d a t e o l o g i a c r i s t ã 16

do nada. Boa parte da h istória narrada aqui p re te n d e explicar as tensões, conflitos e controvérsias q u e subjaziam às idéias ap a re n te m e n te especulativas, co m o a n a tu re ­ za trina e una d e D eu s (a T rindade) e a u n ião hipostática (h u m an id a d e e divindade) de C risto. N e n h u m a dessas duas crenças é claram en te articulada na Bíblia. A lém disso, e n q u a n to estavam sen d o desenvolvidas pelos p rincipais pen sad o res da igre­ ja prim itiv a (séculos iv e v), o cân o n das E scrituras C ristãs era identificado e for­

m alizado.2

Por q u e foram desenvolvidas essas d o u trin a s cristãs q u e pareciam ser técnicas m as q u e são to talm e n te cruciais? C e rta m e n te não p o rq u e os bispos e os dem ais líderes não tivessem m ais o q u e fazer. A razão é sim p le sm e n te p o r q u e idéias subversoras d o evangelho a respeito de D e u s e de Jesu s C risto estavam su rg in d o rapid am en te e co n q u istan d o popu larid ad e, e se fossem aceitas p o r m u ito s criariam u m “evangelho d ife re n te ”, um a religião d iferen te da ensin ad a pelos apóstolos e d ifu n d id a nos p rim eiro s séculos da igreja. Em quase to d o s os casos, as d o u trin as foram propostas e desenvolvidas p o rq u e alguém p erceb e u q u e o p ró p rio evange­ lho estava em jo g o .

A tu alm en te, tem os as d o u trin as da T rindade e das duas n aturezas de Je su s C ris­ to, e a m aioria das ram ificações d o cristianism o, h o je dividido, as aceita sem m u ita relutância. Aliás, são am p lam en te aceitas co m o verdadeiras, m esm o q u a n d o não são b e m -e n ten d id as. N o en ta n to , a m aioria das crenças falsas q u e surg iram na igreja prim itiva e q u e fo ram a causa do d ese n v o lv im en to dessas d o u trin a s ainda se e n c o n tra hoje em p len o vigor, ora d e n tro das ram ificações do cristian ism o que o ficialm ente confessam a crença na d o u trin a da T rindade e na d a h u m a n id a d e e d ivindade de Jesu s C risto , ora nas seitas e e n tre os liberais e livres-pensadores às m argens do cristianism o. E n te n d e r co m o e p o r q u e essas e o u tras crenças cruciais d o cristianism o foram desenvolvidas e definidas co m tanta exatidão ajuda a im p e­ d ir q u e sejam negligenciadas n o p re sen te a p o n to de chegarem m esm o a se perder. E b o m q u e o leitor co n h e ça os pressu p o sto s básicos deste livro. O p rim eiro deles é o de q u e as crenças têm im portância. A esta altura, isso já deve estar claro. O q u e as pessoas acreditam afeta o m o d o co m o vivem . N e n h u m d iscipulado cristão q u e seja vital, d in âm ico e fiel se e n c o n tra co m p le ta m e n te d esp ro v id o de e n te n d i­ m e n to d o u trin ário . N u n c a h ouve n e m n u n c a haverá. N in g u é m co nsegue servir fielm ente a D eu s sem saber algum a coisa a respeito da n atu re za e v o n tad e divinas.

D u ra n te boa parte da h istória d o cristianism o, as crenças eram m ais im p o rta n ­ tes d o q u e hoje o são para m u ito s cristãos co n tem p o rân eo s. Ler e c o m p re e n d e r a história da teologia cristã re q u e r a consciência prévia de q u e os cristãos das eras passadas q u e se debatiam co m as q u estõ es d o u trin ária s realm en te se preocupavam em crer as coisas certas a respeito d e D eus. Este era o caso não so m e n te d os bispos e teólogos profissionais, m as tam b ém dos leigos d e n tro das igrejas.

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N o século iv, o g rande pai capadócio da igreja, G re g ó rio de N issa, queixava-se de não p o d er ir a n e n h u m lugar e n em fazer q u a lq u e r coisa em C o n sta n tin o p la — a nova capital do Im p ério R o m an o — sem ser envolvido pelos cidadãos em deba­ tes a respeito da T rindade. E m sua obra sem inal sobre a T rindade, Da divindade do

Filho e do Espírito Santo, escreveu: “Se a gente p e d ir u m trocado, alg u ém irá filosofar

sobre o G e rad o e o N ã o -g era d o . Se p e rg u n ta r o preço d o pão, dirão: ‘O Pai é m aior e o F ilho é in fe rio r’. Se p erg u n tar: ‘O b a n h o está p ro n to ? ’, dirão: ‘O Filho foi criado do nada”’.3

G re g ó rio de N issa c e rtam en te não estava reclam an d o do en v o lv im e n to d e cris­ tãos c o m u n s nas d isputas teológicas. Se seu co m en tá rio tem to m de queixa é p o r­ q u e a m aioria dos leigos naqueles tem p o s parecia sim patizar c o m a posição oposta: a heresia ariana o u sem i-ariana q u e rejeitava a igualdade total e n tre Jesu s o F ilho e D eu s Pai. C o m o em m u itas o u tras co ntrovérsias d o u trin ária s antes e depois da­ quela, tan to leigos c o m o líderes eclesiásticos e teólogos profissionais e n c o n tra m - se ativam ente envolvidos no debate sobre as crenças cristãs corretas. As crenças tin h a m im p o rtân cia naquela época e devem c o n tin u a r te n d o agora.

O segundo pressuposto é o de que, às vezes, as crenças adquirem im portância demais! N o d eco rrer d e dois m il anos de teologia cristã, houve m u ito s debates, c o n ­ flitos e até m ortes, tu d o com p letam en te desnecessário no tocante a diversas questões realm ente secundárias da d o u trin a cristã. Sem querer, de m o d o algum , aviltar os

reform adores protestantes na sua grande obra da reform a 110 século xvi, diria q u e a

falta de união devida em grande parte à falta de consenso sobre a presença de C risto

na C eia do S en h o r é u m escândalo e um a m ancha 11a história da teologia protestante.

É claro que L utero, Z uínglio, C alvino c o u tro s reform adores tam b ém discordavam a respeito de outras coisas, m as essa questão d outrinária parece ter sido o grande divisor de águas q u e tu d o destruía e im pedia a união dos protestantes. E não há desculpa para se queim ar, afogar e decapitar pessoas por serem consideradas hereges.

Às vezes, o acerto d o u trin á rio e teológico tem im p o rtad o dem ais. N o s nossos dias, p o ré m , parece q u e o p ê n d u lo já ch eg o u à ex trem id ad e oposta, já q u e m u ito s cristãos sabem p o u co ou nada a respeito das d o u trin as cristãs o u de co m o e p o r q u e se desenvolveram . O cristian ism o está c o rre n d o o risco de se to rn a r u m a religião folclórica de cu lto tera p êu tico e se n tim e n to s pessoais.

O terceiro p re ssu p o sto é o de q u e as crenças cristãs válidas — as q u e são co n si­ deradas verdadeiras — não têm o m esm o grau de im portância. A lgum as são dogm as e m erecem ser defen d id as séria e até m esm o calorosam ente. A credito q u e a T rin ­ dade e a encarnação p erte n çam a essa categoria. P or essa razão, co n sid ero Atanásio, bispo e teólogo egípcio d o século iv, u m g rande herói. Ele foi exilado d e A lexandria, sua cidade natal e diocese cinco vezes, p o r ser in tran sig en te em relação a essas

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H á o utras crenças q u e são verdadeiras e não são tão cruciais para o evangelho ou para a identidade do cristianism o e de sua m ensagem . M as tê m sua im p o rtâ n ­ cia. C h a m o -a s d o u trin as em contraposição aos dogm as.4 T ratam -se de crenças que poucos o u talvez n e n h u m g rande g ru p o cristão im p õ e c o m o essenciais para um a pessoa ser considerada cristã, m as q u e p o r alguns são consideradas testes d e c o m u ­ nhão. Isto é, para p e rte n c e r a d eterm in a d a tradição, d en o m in aç ão o u igreja, a p es­ soa deve confessá-las o u , pelo m en o s, não negá-las. P or exem plo, os batistas — os da m in h a tradição, q u e se o rig in o u 110 século xvn — insistem q u e o batism o dos crentes (tam b ém ch am ad o batism o de adulto s), n o rm a lm e n te m ed ian te a im ersão na água, é o m o d o n o rm ativ o d o batism o. N o en tan to , os batistas não negam o cristianism o au tên tico das pessoas q u e acreditam n o batism o de bebês e o p ra ti­ cam. Para os batistas, p o rtan to , o batism o p o r im ersão dos cren tes é um a d o u trin a m as não u m dogm a.

F inalm en te, há u m a terceira categoria de crenças q u e c h a m o opin iõ es teológi­ cas o u interpretações individuais. D u ra n te a R eform a, alguns líderes p ro testan te s classificaram essa categoria de adiájora, palavra q u e p ro v ém de u m te rm o em latim q u e significa “coisas q u e não são m u ito im p o rta n te s” o u “q u estõ es de in d ifere n ça”. Pelo q u e e n te n d o , u m exem plo disso seriam os p o rm e n o re s das crenças a respeito da natu reza exata dos anjos e os d etalhes dos eventos associados à segunda vinda de C risto . E m grande parte da h istória eclesiástica, essas e o u tras q u estõ es b em m ais insignificantes foram debatidas, m as sem m u ito entu siasm o .

E m bora não aprove a perseguição de um a pessoa p o r causa das suas crenças (sen­ do batista, creio firm em ente na liberdade de consciência), realm ente acredito q u e os dogm as genuínos foram defendidos da m elh o r m aneira — às vezes até à m o rte — pelos pais da igreja c pelos reform adores. Esta é um a história q u e poucos cristãos conhecem e contá-la é u m dos propósitos deste livro. N ã o fosse pelo q u erid o A taná- sio — o “santo da teim osia” d o século rv — , os dogm as da plena e verdadeira divin­ dade de C risto e a natureza trina e una de D eus teriam sido provavelm ente engolfados n u m pântano de m eios-term os políticos d e n tro do im pério e da igreja. E m bora o grande cronista da queda de R om a, E dw ard G ibbon, achasse q u e a união d o Im pério R om ano foi destruída indevidam ente pela recusa obstinada em ceder, para m im , o que estava em jo g o era a integridade do próprio evangelho.

O q u a rto p re ssu p o sto im p o rta n te deste livro é o d e q u e re alm en te existe u m a lin h a de p ensadores cristãos e idéias in flu en tes q u e vem d esd e o N o v o T estam en ­ to até os dias de hoje e q u e, em b o ra esteja aberta ao debate, à co rreção e à revisão, não se trata de u m b an d o de “h o m e n s bran co s m o rto s ” reco n h ec id o s p o r u m a elite poderosa d e n tro da igreja q u e visa apoiar a d o m in ân cia de d e te rm in a d o g ru ­ po de líderes. Essa q u estão po d e ser p o u co co n h ecid a p o r alguns leitores. M as os professores e estu d io so s de religião e teologia saberão de q u e se trata. Existe um a

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ten d ên cia crescen te n os círculos acadêm icos de rejeitar a idéia d e u m a coleção restrita de clássicos de u m a certa área de estu d o em b enefício de algo m ais in c lu ­ sivo e q u e m e lh o r re p resen te m in o rias e m u lh ere s. Esse m o v im e n to te m sua cota de razão. C e rta m e n te , o câ n o n tradicional de clássicos cu ltu ra is, h eró is e ícones precisa ser am pliado. M as isso não significa q u e a in flu ên cia legítim a não vá d e te r­ m in ar quais escrito res e p en sad o res do passado d ev em ser estu d ad o s. E u gostaria m u ito d e e n c o n tra r reg istros de teólogas in flu en tes da igreja prim itiv a, da era m e ­ dieval e da R eform a. M as e m b o ra as m u lh e re s ce rta m e n te estivessem p re sen tes e te n h a m in flu íd o na vida esp iritu al d o cristian ism o d u ra n te toda a sua história, antes d os tem p o s m o d e rn o s, n e n h u m a c o n se g u iu in flu en c ia r m a rc ad am e n te o ru m o e a ten d ên c ia da teologia da igreja.

Para alguns críticos, a falta de m ães da igreja5 é u m a prova do p re co n ce ito dos

teólogos m ascu lin o s 011 da inevitável natu reza patriarcal do p ró p rio cristianism o.

A credito q u e seja u m a prova da natu reza patriarcal da c u ltu ra ocidental em geral (da qual o cristian ism o faz parte) e de u m a acom odação c u ltu ra l da igreja cristã e das suas instituições. D everiam ter havido m ães da igreja paralelam en te aos pais da igreja. O fato de isso não ter acontecido c u m escândalo para a igreja, m as não é m otiv o para as histórias revisionistas q u e as inventam .

As m in o rias étnicas, co m o são cham adas p o p u la rm e n te nos Estados U n id o s hoje em dia, estavam b em representadas na igreja prim itiva e na sua teologia. Por exem plo, o herói já m en cio n a d o , A tanásio, era ch am ad o p o r seus c o n te m p o râ n e ­ os, sem ofensa, de “o anão n eg ro ” p o r causa de sua altura e c o r da pele. E ra africa­ no, assim co m o m u ito s o u tro s grandes p ensadores da igreja prim itiva. Vários eram sem itas — de descen d ên cia e id en tid ad e árabe o u ju d aica. Aliás, p oderia ser levan­ tado o forte a rg u m e n to de q u e os pen sad o res m ais form ativos e in flu en tes d o cris­ tianism o p rim itiv o — tan to h eréticos q u a n to orto d o x o s — m oravam e trabalha­ vam no Egito e em o u tras partes da África d o N o rte . C e rta m e n te eles não p o d e ri­ am ser cham ados “h o m e n s bran co s m o rto s”!

E m boa parte da década de 80, u m m o v im e n to q u e visava negar a existência de q u a lq u e r tipo de linha principal de p ensadores e idéias in flu en tes g an h o u p o p u la­ ridade e causou m u ita controvérsia. Sem rejeitar a legitim idade dos apelos pela am pliação e m aio r abrangência das listas de p ensadores in flu en tes, creio q u e existe u m a lista objetiv am en te identificável de p ensadores cristãos in flu en tes à qual m e co n cen trei neste livro a fim de oferecer aos leitores u m a base para q u e c o m p re e n ­ dam a história da teologia cristã. P or exem plo, se alguém q u ise r e n te n d e r c o m o os

cristãos chegaram a crer 110 d o g m a da T rindade, seria d eso n e sto da m in h a parte

negar q u e O ríg e n es, A tanásio e os três pais capadócios foram os protagonistas des­ se dram a. O u tro s p o d em ter d ese m p e n h ad o papéis secu n d ário s m as, sem dúvida, esses h o m e n s foram os atores principais.

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A lguns leitores talvez q u e stio n e m essa linha p rincipal de p ensadores cristãos m ais in flu en tes sob u m p o n to de vista bastante d iferen te: “P or q u e ler sobre pesso­ as das quais n u n ca ouvi falar? C o m o p o d e m ser tão im p o rta n te s se m e u p astor n u n ca as m e n c io n o u ? ”.

C o m o resposta, apelo à m in h a “teoria do efeito e m cascata”.6 M esm o q u em n u n ca ouv iu falar de A tanásio, p o r exem plo, po d e estar p ro fu n d a m e n te in flu e n c i­ ado p o r ele. E n tre o u tras coisas, A tanásio escreveu u m p e q u e n o tratado sobre a divindade de Jesu s C risto in titu lad o De incarnatione o u D a encarnação do Verbo, no qual ap resen to u u m a rg u m e n to sólido em favor da d ivindade d e Jesu s C risto em pé de igualdade com a p rópria divindade d o Pai e, co m isso, aju d o u a estabelecer o dogm a da T rindade c o n tra a crescente o n d a de sim patia p o r u m tipo de crença sem elh an te à das T estem unhas de Jeová q u e enxerga C risto co m o u m a grandiosa c ria tu ra d e D e u s. U m a longa lin h ag em de p e n sa d o re s cristão s, in c lu in d o os refo rm ad o res protestan tes, considerava a obra de A tanásio conclusiva e decisiva. A lém disso, A tanásio c o m p ilo u a prim eira lista autorizada de 66 livros inspirados da Bíblia cristã na sua carta da Páscoa, d issem inada e n tre os bispos cristãos em 367. Identifico u um a lista de livros secundários q u e p o ste rio rm e n te surg iriam na igreja ocidental (latina, católica rom ana) co m o os apócrifos inspirados. F in a lm e n te , Ata­ násio tam b ém visitou os erem itas cristãos q u e habitavam em cavernas n o d eserto d o Egito e escreveu u m a hagiografia (biografia de u m santo) a resp eito de u m deles, A ntão, o E rm itão. A vida de santo Antão ch eg o u à E u ro p a p o r in te rm é d io do exílio de Atanásio e to rn o u -se um a base im p o rtan te para a ascensão d o m onasticism o e dos m o steiro s q u e, p o r sua vez, influ en ciaram p ro fu n d a m e n te o cristianism o ocidental p o r m u ito s séculos.

Levando tu d o em consideração, p o rtan to , A tanásio é u m b o m ex em p lo da m i­ nha teoria do efeito em cascata q u e explica p o r q u e os cristãos da atualidade devem estu d ar e c o m p re e n d e r os pensadores cristãos d o passado distante, de n o m es q u e n u n ca o u v iram falar. A pesar de os atuais cristãos d e sc o n h ece rem esses teólogos, foram eles q u e in fluenciaram o cristian ism o q u e os n u triu e sp iritu alm en te e lhes deu identidade. Eles fazem parte da “grande n u v em de te ste m u n h a s” de todos os cristãos (I lb 12.1). São nossos antepassados espirituais e teológicos. A p re n d er sua história e o papel q u e desem p en h av am na g ran d e h istória da teologia é u m exercí­ cio de e n te n d im e n to d e si m esm o . E o m esm o q u e c o n h e c e r as raízes da p rópria família.

M as para q u e estu d ar os hereges, co m o A rio, cujas idéias foram co ndenadas co m o distorções graves d o evangelho e rejeitadas p o r grandes p ensadores co m o Atanásio? N ã o seria m e lh o r co n c e n tra r a atenção so m en te n os da n u v em de teste­ m u n h a s q u e contavam a verdade? Essa h istória da teologia cristã in clu irá m u ito s debates sobre os q u e negavam a ortodoxia, os m estres teo lo g icam en te in co rreto s

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da igreja, q u e fre q ü e n te m e n te p ro m o v iam falsos evangelhos o u versões distorcidas d o evangelho de Jesu s C risto . Q u a l é o valor de tal estudo?

U m a concepção p o p u la r e rrô n e a — talvez u m a lenda u rb a n a d o cristianism o — é a de q u e o Serviço Secreto dos Estados U n id o s n u n ca m o stra aos fu n cio n ário s dos bancos as cédulas falsificadas q u a n d o q u e re m en sin á-lo s a iden tificar d in h e iro falso. D iz a lenda q u e os agentes q u e ad m in istram o tre in a m e n to só m o stra m aos bancários exem plares verdadeiros d e d in h e iro e, assim , q u a n d o o d in h e iro falsifi­ cado aparecer d ian te deles, re co n h ec erã o co m o é diferen te. A m oral da h istória é q u e o cristão deve estu d ar so m en te a v erdade e n u n c a heresias.

N a p rim eira vez em q u e ouvi essa história em u m serm ão, percebi q u e era falsa. Ao verificar com o agente d o Serviço S ecreto d o D e p a rta m e n to d o T esouro de M inneapolis, encarreg ad o de tre in a r os bancários a identificar o d in h e iro falsifica­ do, foi co n firm ad a a m in h a suspeita. Ele rid icu lariz o u a h istó ria e ac h o u estra n h o q u e alguém a tivesse in v en tad o e q u e o u tro s tivessem acreditado nela. A ten d e n d o a u m ped id o m eu , e n v io u -m e u m a carta co n firm a n d o q u e o S erviço S ecreto na verdade m ostra aos bancários exem plares de d in h e iro falsificado.

C reio q u e é im po rtan te e valioso para os cristãos co nhecer não so m en te a d o u tri­ na teológica correta (a ortodoxia) m as tam b ém as idéias dos q u e são considerados hereges d e n tro da história da igreja. U m a razão para tanto é q u e é quase im possível apreciar o significado da ortodoxia sem e n te n d e r as heresias q u e a forçaram a se definir. O que agora co nhecem os p o r ortodoxia (não a “O rto d o x ia O rie n ta l”, mas a ortodoxia com o “d o u trin a teológica co rreta”) não nasceu de rep en te na igreja com o Atena saiu da cabeça de Z e u s na m itologia grega. Ela foi crescendo co m o resultado dos desafios q u e a heresia im pôs. A fim de co m p re en d er co rretam en te o dogm a ortodoxo da Trindade, é necessário e n te n d e r os ensinos de A rio de Alexandria, que desafiou seriam ente, n o com eço do século rv, a crença na eterna trindade de D eus.

O u tr o b o m m otiv o para estu d a r as heresias e os hereges é q u e n u n c a se sabe q u a n d o D e u s pode golpear v io le n ta m e n te com u m a vara torta. A linguagem figu­ rada de L u tero nessa expressão inculca a lição de q u e até m esm o u m herege pode c o n trib u ir de algum a form a para o e n te n d im e n to cristão ap ro p riad o da verdade. Q u ase todos os p ensadores cristãos tradicionais a p artir d o século xvi co n c o rd am co m Jo ão C alv in o e co m o co n selh o da cidade de G e n e b ra em relação a M iguel S crveto ser u m herege seg u n d o os padrões da orto d o x ia p ro testan te. Ele negava a d ivindade de C risto e da T rindade (assim co m o A rio n o século iv), b em co m o m u ito s o u tro s itens da crença cristã tradicional. M as seu desafio p ro fético c o n tra a d o m in ân cia p re p o n d e ra n te da cidade pelo R eform ador Jo ã o C alv in o con q u istaria forte apoio da m aioria dos am antes da liberdade h o je em dia.

M uitos dos considerados hereges nos tem pos de L utero e C alvino defendiam a liberdade da alm a e a religiosa. N a realidade, en tre os tem p o s d o p rim eiro im perador

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ro m an o cristão, C o n sta n tin o , n o século iv, e os m ovim entos d o século x v iiiem favor

da tolerância religiosa na G rã-B retanha e nos Estados U n id o s, os cham ados hereges eram uns dos poucos q u e argum entavam em favor da liberdade religiosa.

O q u in to e ú ltim o p re ssu p o sto q u e subjaz esse relato da h istória da teologia cristã é q u e D eus opera de m o d o s m isteriosos para estabelecer o seu povo na ver­ dade e para re fo rm ar a teologia q u a n d o necessário. N ã o u so n e n h u m pretex to do histo ricism o — o p re ssu p o sto m eto d o ló g ico de q u e todas as idéias p o d em ser re­ duzidas a seus contextos h istó rico -c u ltu ra is e p o r eles explicadas. C o m o cristão convicto e dedicado, creio na o rientação (e não n ecessariam ente n o co n tro le ) p ro ­ videncial de D eu s para to d o s os eventos. A h istória da teologia cristã é, seg u n d o acredito, m ais do q u e u m a história h u m an a. Ela faz p arte da história da interação de D eus com seu povo, o co rp o de C risto . Assim co m o o teólogo c o n te m p o râ n e o H an s K üng, creio q u e D e u s m an tém a igreja na verdade, m as não na evolução tran q ü ila da sua descoberta progressiva. D eu s o pera através de agentes h u m a n o s cuja m e n te e coração são anuviados pelo pecado. H á perío d o s na histó ria da igreja e de sua teologia nos quais p erceb er a m ão de D e u s m a n te n d o -a na verdade é p u ro ato de fé. E xistem o u tro s perío d o s ou capítulos da história q u e não exigem m u ita fé para p erceb er D eu s o p eran d o na restauração da verdade.

A q uestão é sim p le sm e n te q u e este livro não deve ser lido co m o u m a descrição h istórico-científica e n e u tra da evolução da teologia cristã. O u tro ssim , tam b ém não deve ser lido co m o o tipo de relato altam en te p re co n ce itu o so q u e existe em algum as das histórias eclesiásticas m ais fam osas o u infam es. A p rim eiríssim a his­ tória eclesiástica a o cu p a r u m livro in teiro foi escrita pelo bispo E usébio n o século iv e tin h a a clara inten ção de d e m o n stra r a m ão de D eu s p o r detrás da ascensão ao po d er d o im p era d o r C o n sta n tin o — o p rim e iro im p e ra d o r ro m a n o q u e aceitou o cristianism o. E sfo rcei-m e ao m áxim o aqui para ser fiel aos fatos e para ap resen tar a história da teologia cristã com o m ín im o de distorção possível. Ao m e sm o tem p o , não consigo o cu ltar o fato de q u e creio q u e D eu s n u n ca esteve au se n te da igreja, m esm o nas eras de trevas d u ra n te as quais a luz da v erdade tin h a p o u c o brilho. Se há algum “h e ró i” nesta história, não é C o n sta n tin o n e m A tanásio, p o r m ais g ran d i­ osos o u in flu en tes q u e te n h a m sido, m as o p ró p rio D eu s, a q u e m p erte n ce toda a h o n ra e glória.

A história da teologia cristã exige, inevitavelm ente, certa consideração sobre a filosofia e as influências filosóficas. A partir do século ii, q u an d o com eça a nossa história, a filosofia torna-se a principal interlocutora da teologia. As vezes, ela parece ser m ais d o q u e sim ples interlocutora. Ela faz parte da história — o papel da filosofia no desenvolvim ento das crenças cristãs form ais. O teólogo cristão nortc-africano, Tertuliano, p erg u n to u retoricam ente: “O que Atenas tem q u e ver com Jeru sa lém ?”. Q u e ria protestar contra o uso crescente da filosofia grega (Atenas) pelos pensadores

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cristãos q u e deveriam ter se fu n d am en tad o exclusivam ente nas E scrituras e em fo n ­ tes cristãs (Jerusalém ). O pai da igreja e apologista (defensor da fé) Ju stin o M ártir referiu-se ao cristianism o co m o a “filosofia verdadeira”, ao passo q u e o m estre cris­ tão do século ui, C lem en te de Alexandria, identificou o pensador grego Sócrates com o u m “cristão antes de C risto ”. O m aior de todos os pensadores católicos da

Idade M édia, Tom ás de A quino (século x iii), freq ü en tem en te apelava ao “Filósofo”,

referindo-se ao filósofo pré-cristão A ristóteles, lado a lado co m os pais da igreja, ou até m esm o n o lugar deles, para resolver q uestões polêm icas. P o steriorm ente, o p en ­

sador católico, Blaise Pascal (século x v ii) asseverou q u e “o deus dos filósofos não é o

D eus de Abraão, de Isaque e de Jacó!”.

O re la cio n am en to e n tre a reflexão cristã e a filosofia co n stitu i u m a p arte m u ito im p o rtan te da h istória da teologia cristã. F orn ece algum as das ten sõ es m ais em o c i­ o n an tes dessa história. M as seu estu d o às vezes p ode parecer bastante técnico e confuso. P ro cu rarei sim plificá-lo, m as sem deixar de lado seu significado. Peço paciência, tan to aos estu d an te s iniciantes e aos leitores em geral, q u a n to aos cole­ gas professores e acadêm icos. O s p rim eiro s p o d em achar esse aspecto da narrativa com plicado, en q u a n to q u e os últim o s talvez o considerem excessivam ente sim plista.

A história da teologia cristã com eça n o século n, cerca de cem anos depois da m o rte e ressurreição de C risto , co m o início da co nfusão e n tre os cristãos n o Im ­ p ério R om an o , ta n to d e n tro q u a n to fora da igreja. O s desafios in te rn o s principais eram sem elhantes à cacofonia de vozes q u e m u ito s cristãos e m nossos dias ch am a­ riam “seitas”, ao passo q u e os desafios ex tern o s eram sem elh a n te s às vozes q u e m u ito s hoje ch am ariam “céticos”. E dessas vozes desafiadoras q u e su rg iu a neces­ sidade e os p rim ó rd io s da orto d o x ia — u m a declaração definitiva d aq u ilo q u e é teologicam ente correto. A única opção era a co n fu são total.

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P

r im e ir a

P

a r t e

P r im e ir o

ato:

Visões cristãs conflitantes no século n

A história da teologia não se inicia n o com eço. Isto é: a teologia cristã co m eç o u

m u ito te m p o depois de Jesu s C risto te r c a m in h a d o na terra co m seus discípulos e m esm o depois de ter m o rrid o o ú ltim o discíp u lo e apóstolo. A teologia é a reflexão da igreja a respeito da salvação trazida p o r C risto e a respeito d o evangelho da salvação proclam ada e explicada pelos apóstolos do século i.1

O ú ltim o apóstolo de Jesu s a m o rre r foi Jo ã o “o A m ad o ”, o m ais jo v e m deles, q u e m o rre u p o r volta de 90, em b o ra a data exata seja incerta. U m a tradição fide­ digna, deixada pelos p ró p rio s discípulos de Jo ão no século n, diz q u e ele m o rre u em Efeso e q u e foi bispo (episkopos, “s u p e rin te n d e n te ”) de to d o s os cristãos e de todas as igrejas cristãs d aquela região na Ásia M e n o r (m o d ern a T urquia). Jo ã o é o pivô da h istória da teologia cristã, p o rq u e sua m o rte m arc o u u m m o m e n to decisi­ vo. Pelo q u e sabem os, n e n h u m apóstolo re c o n h ec id o o u a m p lam en te aceito so­ breviveu a João. C o m a sua m o rte, o cristian ism o e n tro u n u m a nova era, para a qual não estava in te ira m e n te preparado. Já n ão seria possível so lu cio n ar debates d o u trin ário s, o u q u a isq u e r q u e fossem , apelando para u m apóstolo.

O s apóstolos eram h o m e n s e m u lh e re s de g rande p restígio e a u to rid a d e 110

cristianism o primitivo.. E ram te ste m u n h a s oculares de Jesu s, o u pelo m en o s pes­ soas in tim a m e n te ligadas ao seu m in istério , o u aos m in istério s de seus discíp u lo s.2 E n q u an to viviam , não havia necessidade da teologia n o m e sm o se n tid o q u e depois de sua m orte. A teologia nasceu à m ed id a q u e os h erd eiro s dos apóstolos co m eça­ ram a refletir sobre os e n sin a m e n to s de Jesu s e deles a fim d e explicá-los em novos contextos e situações e resolver controvérsias q u a n to à crença e c o n d u ta cristãs.

E claro q u e os apóstolos deixaram obras escritas. João, por exem plo, deixou u m Evangelho de Jesus C risto, algum as cartas e a visão q ue recebeu q u a n d o estava exila­ d o na ilha de Patm os.3 Esses escritos apostólicos não foram , p o ré m , encadernados com capas de co u ro estam padas com o títu lo “Bíblia Sagrada” e, no ano 100, ainda

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cristãs. N ã o q u erem o s dizer com isso que n e n h u m cristão pensava nos escritos dos apóstolos com o as Escrituras. A m aioria dos cristãos daquele tem p o provavelm ente considerava os escritos autênticos dos apóstolos m u ito especiais em certo sentido e,

ocasionalm ente, os pais da igreja no século 11 realm ente os citavam com o Escrituras.

O p roblem a é q u e n e n h u m a igreja ou região do cristianism o, co m o R om a, Efeso o u o Egito, tinha u m a coletânea com pleta dos escritos apostólicos e havia falta de co n ­ senso geral sobre que livros e cartas tin h am sido realm en te escritos pelos apóstolos. C o m o tem po, a necessidade de u m registro e interpretação escritos dos ensinos de Jesus e dos apóstolos to rn o u -se tão u rg en te q u e igrejas independentes, grupos de igrejas e, finalm ente, todos os líderes cristãos re u n iram , traçaram e definiram os escritos dos apóstolos e das pessoas estreitam ente ligadas a eles. P ortanto, a Bíblia cristã, o u o cânon das Escrituras, evolveu lenta e dolo ro sam en te depois de m uitas controvérsias. N o século n, n o entanto, esse processo estava apenas com eçando.

O s p rim eiro s teólogos cristãos foram os bispos e o u tro s m in istro s e líderes de congregações cristãs n o Im p ério R om ano. C h eg aram a ser co n h ecid o s p o r pais apostólicos p o rq u e, su p o stam en te, c o n h e ceram u m o u m ais dos apóstolos, mas não eram apóstolos. Sua co n trib u içã o para a h istória da teologia cristã será contada nesta seção. A seção term in ará ao e stu d arm o s Iren eu , o bispo d o final do século n q u e, p rovavelm ente, foi o p rim e iro cristão a ap resen tar u m relato co m p leto da teologia cristã. A lguns co n sid e ra m -n o o p rim e iro teólogo sistem ático cristão. E n ­ tre as considerações sobre os pais apostólicos e Iren eu aparecerá o tra ta m e n to de u m g ru p o de p ensadores cristãos d o século n g eralm en te agrupados sob o n o m e de apologistas. F oram h o m e n s q u e se esforçaram para d e fe n d e r o cristianism o, no início de sua existência, c o n tra m a l-e n te n d id o s e perseguições e, ao fazerem isso, fre q ü e n te m e n te a trib u ía m -lh e u m a perspectiva filosófica grega.

A teologia em si, c o m o a busca da orto d o x ia (a d o u trin a teológica co rreta), su r­ giu dos desafios im postos aos en sin am e n to s cristãos p o r sectários q u e se ap resen ­ tavam d iante da igreja e d o m u n d o pagão co m o cristãos m ais g e n u ín o s o u im p o r­ tantes d o q u e os principais h erd eiro s dos apóstolos. Esses desafios à m ensagem apostólica e à au to rid ad e dos sucessores n o m ead o s pelos apóstolos tiveram tan to sucesso em criar caos e co n fu são q u e se to rn o u im prescindível o d ese n v o lv im en to de u m a reflexão teológica form al para co m b atê-lo s. O s bispos, q u e n o seg u n d o século d o cristianism o eram sim ples su p ervisores de u m g ru p o de igrejas em u m a cidade o u territó rio , re sp o n d e ra m aos críticos e sectários le m b ra n d o o q u e os após­ tolos tin h a m ensinado, re u n in d o , p re serv an d o e in te rp re ta n d o os legados escritos e escrevendo cartas e o p ú scu lo s para circu lar e n tre as igrejas. N o d e c o rre r desse processo nasceu a teologia cristã. C o m os pais apostólicos, a teologia c o n tin u o u sua infância e, so m e n te m ais tarde, depois d o século 11, co m Ire n e u e os pais da igreja, co m eç o u a ca m in h a r ru m o à m atu rid ad e.

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Críticos e sectários

provocam confusão

U s g ran d es p e rtu rb a d o re s d o c ristia n ism o a p o stó lico n o séc u lo li fo ram os gnósticos, M o n ta n o e os m o n tan istas e o o ra d o r anticristão C elso. O u tro s desafia­ ram o fluxo de en sin a m e n to s e práticas d os apóstolos p o r m eio de bispos p o r eles n o m ead o s m as, aos o lh o s dos bispos, aqueles eram os principais o p o n e n te s a ser co m b atid o s e vencidos.

O gnosticism o é u m ró tu lo g en érico aplicado a u m a g rande variedade de m es­ tres e escolas cristãs q u e existiam às m argens da igreja prim itiv a e q u e chegaram a se to rn ar u m gran d e p ro b lem a para os líderes cristãos n o século li. O n o m e p ro ­ vém da palavra grega gnosis, q u e significa “c o n h e c im e n to ” o u “sabedoria”.

O gnosticismo

C erta tradição d o século 11 descreve o em b ate e n tre o d iscíp u lo Jo ã o e u m e m in e n ­

te m estre g nóstico d e Éfeso p o r volta de 90 a.C . C e rin to talvez te n h a sido u m dos p rim eiro s m estres gnósticos e p ertu rb ad o re s d o cristian ism o do final d o século i. C o n fo rm e a tradição, Jo ã o foi ao balneário p ú b lico de Éfeso co m alguns dos seus discípulos e, ao entrar, p erceb e u q u e C e rin to estava ali. E n tão saiu apressado de lá, sem se banhar, exclam ando: “Saiam os depressa para q u e ao m en o s o b alneário não desabe sobre nós, pois C e rin to , o in im ig o da verdade, ali se e n c o n tra ”.1

A antipatia de Jo ã o pelo m estre g nóstico C e rin to p e rp e tu o u -se c o m os líderes

cristãos n os séculos 11 e ui. P or quê? Q u e m foram os gnósticos e p o r q u e Jo ã o e os

sucessores dos apóstolos na igreja prim itiv a co n sid erav am -n o s os principais “in i­ m igos da v erd ad e”? Farei u m a descrição breve d o g n o sticism o d o século n e de alguns de seus h erd eiro s m o d e rn o s e, n o fim d o capítu lo , re to rn are i a u m estu d o m ais p o rm e n o riz a d o dos en sin o s d o gnosticism o.

O s gnósticos não tin h a m organização unificada e discordavam e n tre si a resp ei­ to de m u ito s assuntos, m as to d o s acreditavam p o ssu ir u m c o n h e c im e n to o u sabe­ d oria espiritual su p e rio r à q u e possuíam e ensinavam os bispos e o u tro s líderes

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eclesiásticos do século n. E m re su m o , acreditavam ser a m atéria, in c lu in d o o cor­ po, um a prisão in e re n te m e n te lim itan te ou até m esm o u m obstácu lo m aligno para a boa alm a ou espírito d o ser h u m a n o e q u e o espírito, essen cialm en te divino, u m a “centelha de D e u s”, habitava o tú m u lo d o corpo. Para to d o s os gnósticos, a salva­ ção significava alcançar u m tipo especial de c o n h e c im e n to q u e não seria g eralm en ­ te c o n h e cid o pelos cristãos c o m u n s n em seq u e r estaria à sua disposição. T algnosis o u conhecimento, im plicava re co n h ec er a v erd ad eira orig em celestial d o espírito, sua n atureza divina essencial, co m o u m a p arte d o p ró p rio ser de D eu s, e C risto com o o m e n s a g e iro e s p ir itu a l im a te ria l e n v ia d o p o r esse D e u s d e s c o n h e c id o e incognoscível para buscar e resgatar as centelhas dispersas de seu ser, agora aprisi­ onadas em corpos m ateriais. Todos os gnósticos acreditavam q u e C risto não havia encarn ad o em Jesu s na realidade, m as q u e sim p le sm e n te tin h a a aparência de u m ser h u m an o .

Esse é u m sim ples esboço d o gno sticism o d o século n. P o ste rio rm en te, ele será d escrito com m ais detalhes. P or e n q u a n to basta d izer q u e essa fo rm a esotérica de cristianism o era encarada pelos cristãos p rim itiv o s c o m o u m a m en sag em especial para as pessoas da elite e co m o u m evangelho secreto de Jesu s, m ais verd ad eiro e sublim e, tra n sm itid o o ra lm e n te p o r u m g ru p o de discípulos m ais ín tim o . E certo q u e os cristãos p o d eria m e n c o n tra r leves ecos e vestígios da m en sag em gnóstica no q u e o uviam de seus bispos e pastores sobre o e n sin o apostólico e nas epístolas apostólicas q u e circulavam em seu m eio. M as o evangelho gnóstico extrapolava os e n sin am e n to s dos apóstolos n o tocante ao co n flito e n tre a “c a rn e ” e o “e sp írito ”.

M u ito s cristãos do século n foram atraídos para o g n o sticism o p o r ele se m o s­ trar co m o u m a fo rm a especial da v erdade cristã, m ais su b lim e, m e lh o r e m ais espi­ ritual d o q u e a q u e os bispos ensinavam às massas incultas e im puras. O gnosticism o apelava para e estim ulava o elitism o espiritual, o sigilo e a divisão d e n tro da jo v e m igreja cristã q u e com eçava a desabrochar.

N o século xx, diversos g ru p o s e in d iv íd u o s q u e se p ro clam am “cristãos da N ova E ra” ressuscitaram a m ensagem gnóstica do século n. N a realidade, os ecos d o g nosticism o nas igrejas cristãs atravessaram os séculos, m as foram silenciados pela supressão oficial dos im p erad o res cristãos e das igrejas estatais. C o m o p lu ralism o m o d e rn o e a tolerância a opiniões conflitantes e, ainda, c o m a separação e n tre a igreja e o estado, o gno sticism o v o lto u a levantar a cabeça para desafiar o evangelho apostólico da salvação. R aras vezes é identificado c o m o “g n o sticism o ”. E ap resen ­ tado fre q ü e n te m e n te p o r cristãos q u e se a u to -in titu la m esotéricos c o m o u m a for­ m a m ais p u ra d o cristian ism o para pessoas g e n u in a m e n te espirituais q u e to lera m o d o g m atism o sufocante e a institucionalização das igrejas oficialm en te ortodoxas.

Q u a n d o o ch a m a d o m o v im e n to da N o v a Era ganhava força na G rã -B reta n h a e nos E stados U n id o s nas décadas de 70 e 80, dois de seus partidários decidiram

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29 C rítico s e sectários provocam confusão

fu n d ir o p e n sa m e n to da N o v a Era e o cristian ism o gnóstico: G eorge Trevelyan e E lizabeth C lare P rophet.

Sir G eorge Trevelyan, c o m u m e n te conhecido p o r “o pai do m o v im e n to da N ova

Era britânica”, escreveu livros populares c o m o /l vision o f the Aquarian Age: ati emerging

spiritual world view [Uma visão da Era Aquariana: a visão de um mundo espiritual emergente]

na tentativa de p ro m o v er o despertar e a renovação do gnosticism o. Ele escreveu:

U m a m udança notável está acon tecen do n o am biente intelectual dos nossos tem pos. A cosinovisão holística está tom ando nossa con sciên cia e su bstituin ­ do o m aterialism o racional q ue certam ente está se m ostrando inadequado ao explicar o n osso universo fantástico. R ealm ente estam os recuperando o que era cham ado Sabedoria Eterna dos M istérios da A ntigüidade, que sabia que o U n iverso é M ente e não m ecanism o, que a Terra é uma criatura com sen ti­ m en tos e não apenas m ineral m orto, que o ser hum ano é, cm essência, espi­ ritual, uma gotícula da D eidade abrigado n o tem plo do corpo. Essa visão, um a vez captada, rem ove da nossa cultura eivada pela m orte o m ed o prim iti­ vo da m orte. O corpo pode ser destruído, mas a alm a/espírito ein cada um de n ós é imortal e eterna.2

Assim co m o os gnósticos d o século n, Trevelyan não fu n d o u u m a d en o m in aç ão n em u m a igreja. P referiu apenas ser pro fesso r dessa sabedoria su p e rio r da d iv in d a­ de da alm a hum ana.

E lizabeth C lare P ro p h et, co n h ecid a pelos seus seguidores “G u ru M a ”, fu n d o u seu m o v im e n to religioso d istin to co n h ecid o pelo n o m e de Igreja U n iv ersal e T riu n ­ fante. Sua m en sag em de u m cristian ism o da N o v a Era fo rm a paralelos quase exa­ tos com o g nosticism o cristão da A ntigüidade. Ela p esq u iso u p ro fu n d a m e n te os escritos gnósticos co n h ecid o s p o r biblioteca de N a g H a m m a d i, d escoberta n o d e­ serto d o E gito em 1945 e e n c o n tro u neles basicam ente a m esm a m en sag em q u e alega ter-lh e sido revelada pelos “m estres ascensos” c o m o Jesu s e Saint G erm ain . Em Reincarnation: the missing link in Christianity [Reencantação: o elo perdido do cristia­

nismo], P ro p h e t arg u m e n ta q u e os gnósticos eram os cristãos verd ad eiro s q u e h e r­

daram e passaram aos seus seguidores os e n sin a m e n to s m ais su b lim es e m ais espi­ rituais de Jesu s e dos apóstolos, co m o a reencarnação e a id en tid ad e da alm a com D eus.3 O relato q u e P ro p h e t apresenta do cristian ism o p rim itiv o é o inverso da­ quele co n tad o pela m aioria dos histo riad o res eclesiásticos e teólogos históricos. Para ela, os v erdadeiros h eróis e m ártire s da igreja prim itiv a fo ram gnósticos co m o C e rin to , V alentino e Basílides, ao passo q u e os vilões hereges foram os bispos e pais da igreja q u e os criticaram e q u e acabaram c o n trib u in d o para a sua supressão.4 Trevelyan, P ro p h e t e m u ito s o u tro s q u e apóiam várias form as d o cristian ism o esotérico — fre q ü e n te m e n te ligadas de algum m o d o ao ch am ad o m o v im e n to da

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